“Eu nunca tive crise de ansiedade, mas com a pandemia comecei a ter”

Com a pandemia do novo coronavírus a rotina de todas as pessoas mudou da noite para o dia, de forma rápida e abrupta. Paralelamente ao processo de adaptação a uma nova realidade, agora em isolamento social, o vírus da covid-19 se espalhava por todo o mundo de forma desenfreada e, diariamente, os números de contaminações e mortes cresciam. São muitas as consequências de viver confinado e com tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo.
* ilustração por João Estelito.
Os impactos são os mais diversos. Sem abraços, beijos, festas, shows, as relações sociais e interpessoais ficaram limitadas muita das vezes às telas de celulares ou computadores. Em virtude do distanciamento social, os padrões de comportamentos mudaram, as pessoas começaram a desenvolver quadros de ansiedade, sensibilidade excessiva, crises de pânico, estresse e depressão. Segundo um estudo citado na revista Cadernos de Saúde Pública, CSP, no Brasil, estimativas recentes mostraram que os transtornos depressivos e ansiosos respondem, respectivamente, pela quinta e sexta causas de anos de vida vividos com incapacidade.
Quando observamos a rotina vivenciada pelos estudantes durante esse quase um ano e meio de pandemia e ensino virtual, incluindo as tentativas de retomadas as aulas presenciais, vemos explicitamente os contrastes de realidades e a individualidade de cada um deles. “É meio complicado cuidar da minha saúde mental. Eu nunca tive crise de ansiedade, mas com a pandemia eu comecei a ter. É muito difícil uma pessoa com dezessete anos tomar tanta responsabilidade para si, porque eu tento ser forte por mim, mas também tento ser forte pela minha família, porque eles são tudo o que eu tenho. Na pandemia a gente vai dormir e não tem certeza se amanhã quem a gente ama vai estar vivo”, afirma Erivânia da Costa, estudante do terceiro ano do ensino médio.
Os preparativos para o Enem e outros vestibulares tomam muito do psicológico dos estudantes e os fazem desenvolver vários transtornos mentais, assim como pontua a psicóloga clínica e educacional, Débora Conde: “Esses adolescentes podem sim adquirir ou ter adquirido ansiedade, insegurança e baixa autoestima durante a pandemia. É uma cobrança que às vezes vem da família mas também vem muito deles mesmo, ‘Como é que vou conseguir?’ ‘Será que estou estudando certo?’ ‘Será que vai dar certo?’” . Segundo uma pesquisa da Unicef, o Fundo das Nações Unidas para a Infância, 54% das famílias brasileiras relataram que algum adolescente do domicílio onde moram apresentou algum sintoma relacionado à saúde mental durante a pandemia, como alterações no apetite, distúrbios do sono ou preocupação exagerada com o futuro. Além disso, 28% dos jovens de 11 a 17 anos disseram ter sentido uma diminuição de interesse nas atividades cotidianas, e 20% apresentaram agitação, tristeza ou choro fácil.

* Infografia por João Estelito.
"Eu tento me distrair, mas como é que você se distrai sendo um vestibulando? O terceiro ano do ensino médio, pra quem acredita no poder da educação, como eu acredito, é tomar ainda mais responsabilidade pra si, tipo ‘Esse é meu terceiro ano do ensino médio, eu vou fazer valer a pena. Eu vou conseguir uma bolsa de estudos’. É assim que a minha mente tenta pensar, só que a partir do momento que ela pensa isso, ela traz mais responsabilidade ainda, porque já era difícil você ser vestibulando em um ano normal, sem pandemia, aí com a pandemia dobrou os desafios em mil milhões”, acrescenta Erivânia.
"Apoio escolar"

* ilustração por João Estelito.
A falta de apoio efetivo em relação à saúde mental de alunos e professores das escolas públicas cearenses é um aspecto que precisa ser abordado. Emília Parente, 29, coordenadora pedagógica e professora da rede pública estadual e do ensino privado, em Quixadá, no Sertão Central, pontua: “Nós recebemos um suporte da própria regional da 12º CREDE, que é quem representa o governo do estado, e nós tivemos circuitos de giros chamados ‘Giros Socioemocionais’, no qual temos um psicólogo para toda a regional. Então, é um psicólogo para toda a regional da 12º CREDE, que atende mais de 20 escolas.”
Os giros aconteceram em eixos, para o núcleo gestor e professor, nessas escutas qualificadas a equipe teve assistência uma vez por mês. "Nós temos apenas um psicólogo para toda a regional. Eu acredito que foi uma forma de alcance mas que não está contento, mas foi uma iniciativa válida.” acentua Emília Parente.
A sobrecarga de trabalho e ensino totalmente alterado impactou diretamente no desempenho sócio emocional dos trabalhadores da educação. Entre os dois primeiros meses de 2021, cerca de 800 profissionais da educação no Ceará buscaram apoio emocional no projeto Sala de Afetos, voltado para a escuta desses profissionais em todo o Brasil, idealizado pelo cearense Renê Dinelli. Conforme a pesquisa "Sentimento e percepção dos professores brasileiros nos diferentes estágios do coronavírus no Brasil", do Instituto Península, com quase 8 mil docentes, divulgada em maio de 2020, 83% dos professores brasileiros se sentiam nada ou pouco preparados para o ensino remoto. O estudo mostra ainda que 75% dos educadores não receberam nenhum suporte emocional das escolas.
Murilo, 27, professor de matemática na rede pública e privada de Fortaleza, afirma: "Não tive apoio em relação à saúde mental na escola pública em que trabalho, alguns colégios até disponibilizaram conversas com psicólogas, se mostraram disponíveis para receber, acolher a gente nesse período. Mas oferecer algo mais específico em relação à saúde mental, infelizmente, não. Também não ouvi falar de que a escola se colocou com uma profissional específica para conversar com os alunos”, finaliza.
Jornada dupla
Em um país com tantas desigualdades econômicas e sociais como o Brasil, os problemas de saúde mental também afetam mais alguns brasileiros do que outros. De acordo com uma pesquisa feita pelo Instituto FSB Pesquisa para Confederação Nacional da Indústria (CNI), alguns dados surpreendentes são expostos. Em comparação com os homens, as mulheres brasileiras sentiram-se mais tristes (82% contra 67%), com mais medo (80% contra 64%) e mais cansaço (66% contra 41%) nos últimos meses. A dura realidade imposta pela covid-19 pode acentuar os efeitos da desigualdade de gênero e piorar a vida das mulheres, segundo alerta do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), organismo da ONU responsável por questões populacionais.

* ilustração por João Estelito.
A dupla jornada, às vezes tripla, com acumulação de tarefas domésticas, profissionais, estudos, sobrecarregam emocionalmente as mulheres. Para Hariane Costa, 33, coordenadora de uma escola profissionalizante no município de São Gonçalo do Amarante, uma de suas maiores dificuldades foi em relação à rotina no ensino virtual. “Você traz a sua rotina de trabalho para casa, principalmente quando se é mãe, professora, dona de casa, é bastante complicado, bastante complexo. Quem pensa que o home-office é simples, é bom, é fácil, está enganado. Eu estou aqui pra afirmar que é muito difícil. Acredito que agora, não tanto como no início, ainda é difícil conciliar essas duas realidades no mesmo ambiente. Porque antes nós tínhamos o espaço da escola e o ambiente da nossa casa, agora eles convivem juntos simultaneamente”, conta.
A psicóloga Débora Conde ressalta as dificuldades que os professores tiveram para entrar no ensino remoto, no qual as interações com os alunos diminuíram notoriamente. “As dificuldades do meio virtual, perante a pandemia com uma dupla jornada, causa desses profissionais um enorme cansaço emocional, uma ansiedade que afeta muito a rotina.” relata.
NUSCA
Desde a sua origem, o Núcleo Interdisciplinar de Intervenções e Pesquisas sobre a Saúde da Criança e do Adolescente (NUSCA), da Universidade Estadual do Ceará- UECE, tem se debruçado na pesquisa e no conhecimento relacionado a essas faixas etárias, tanto para a criança quanto para o adolescente. Nas pesquisas e discussões dos grupos de estudo, são analisadas temáticas pertinentes a esses períodos do desenvolvimento, como autocuidado, saúde mental, suicídio, entre outras. “No ano de 2021, nossa coordenadora, a professora Alessandra Xavier, se reuniu com a UNICEF local e discutiu sobre a possibilidade de execução de alguns projetos. Já tínhamos realizado um projeto piloto em parceria com a SEDUC, com quinze escolas estaduais de ensino médio daqui de Fortaleza. Esse projeto teve muito êxito e a Unicef enxergou uma possibilidade de experimentar esse projeto de maneira virtual, já que as condições para que a gente se encontrasse presencialmente não eram possíveis em razão da pandemia", conta Dennis Bergkamp, 21, estudante de Psicologia na UECE e voluntário do projeto de extensão e pesquisa, Nusca.
O propósito deste projeto foi trabalhar as questões dos adolescentes no interior do Ceará, escolhidos pela Unicef. Ao todo, participaram 500 estudantes, divididos em 94 municípios do interior do Ceará. “A Unicef escolheu essas escolas, registrou esses alunos para fazerem parte desse projeto e a gente entrou para fazer parte com nossa mão de obra. Para trabalhar sobre saúde mental, emoções, sexualidade, racismo. Foram muitas temáticas que abordamos durante esse projeto, e tudo isso não só para discutir ou fomentar um debate, nossa ideia desde o início foi fazer com que esses jovens que participavam desses momentos se tornassem jovens multiplicadores de conhecimento. Quando você tem a presença de um adolescente imbuído de uma capacidade discursiva crítica, isso muda a condição de um local, seja dentro da família ou dentro da comunidade", explica o estudante.
As pessoas lidam com a pandemia de formas diferentes, mas existem algumas pessoas que sentem mais falta desse contato com o outro, do toque, do abraço, do cheiro e do carinho. “Durante os encontros foi possível perceber uma necessidade de escuta desses adolescentes, da mesma forma como a gente via dentro das escolas presencialmente, mas nesse período de pandemia, isso se intensificou. Porque, às vezes, você não tem uma comunicação tão boa com os seus pais, mas tem uma comunicação muito saudável com os seus amigos, e pode partilhar coisas que geralmente você não partilha dentro de casa. Então, ter isso impossibilitado ou distante, causa um impacto nesses jovens", finaliza Dennis.